A RDC 96/08 da Anvisa, que regula a publicidade de medicamentos, gerou controvérsia judicial. Em fevereiro/20, uma empresa tentou suspender sua aplicação, alegando violação constitucional e excesso de poder normativo.

A Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária desempenha um papel crucial na regulação de medicamentos e outros produtos sujeitos à vigilância sanitária no Brasil. No entanto, a abrangência de seu poder regulatório e sua conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro são, por vezes, objeto de debate no Judiciário. Um exemplo marcante dessa controvérsia é a discussão em torno da RDC 96/08, que trouxe novas regras para a publicidade e promoção de medicamentos no país.

O contexto jurídico e a ação proposta

Em fevereiro/20, uma empresa ajuizou uma ação ordinária com pedido de antecipação de tutela, objetivando afastar, de forma definitiva, a aplicação e exigibilidade da RDC 96/08. Esta resolução dispõe sobre a propaganda, publicidade, informação e outras práticas cujo objetivo seja a divulgação ou promoção comercial de medicamentos.

A controvérsia centralizava-se na possibilidade de a Anvisa autuar a empresa autora da ação, com base nessa resolução, ou ser proibida de aplicar qualquer penalidade pela inobservância das normas estabelecidas. A empresa argumentou que determinados dispositivos da RDC 96/08 violam regras e princípios constitucionais e legais referentes à publicidade de medicamentos, excedendo o poder normativo delegado à Anvisa e interferindo na liberdade de expressão.

A RDC 96/08, que substituiu a RDC 102/00, trouxe novas regras que, segundo a empresa, ultrapassam os limites legais, afetando diretamente aspectos como:

  • A informação ao consumidor (art. 1°);
  • A propaganda indireta por meio da utilização de marcas, símbolos e designações;
  • Restrições ao conteúdo de propaganda, como a proibição de imagens de pessoas utilizando o medicamento ou que indiquem seu sabor (art. 8°);
  • A enumeração de ações permitidas na publicidade (art. 9°);
  • A inserção de novas cláusulas de advertência (arts. 17 e 23);
  • Obrigações de conteúdo técnico na propaganda (arts. 22 e 24);
  • Proibição de veiculação em intervalos de programas infantis na televisão (art. 25);
  • Vedações quanto ao uso de expressões e imagens de pessoas célebres (art. 26).

Esses exemplos foram apresentados como evidências de que a Anvisa, ao impor tais restrições, excedeu os limites fixados pela legislação, especificamente a lei 9.294/96, que regulamenta as restrições à publicidade de produtos como medicamentos.

A defesa da Anvisa e o entendimento judicial

Em sua defesa, a Anvisa argumentou que o exercício da vigilância sanitária é direcionado a eliminar ou reduzir o risco sanitário envolvido na produção e consumo de produtos e serviços de interesse da saúde, conforme determinado pela Constituição Federal. A Agência sustentou que sua atuação estava em conformidade com esse objetivo e que a RDC 96/08 não inovava o ordenamento jurídico, mas apenas regulamentava o que já estava previsto.

No entanto, o Judiciário, ainda em 1ª instância, entendeu que, embora as agências reguladoras, como a Anvisa, tenham o poder normativo técnico atribuído por legislação específica, no caso da Anvisa delimitado pela lei 9.782/99, a RDC 96/08 extrapolou o poder regulamentar do Estado. O tribunal ressaltou que a resolução impôs novas exigências não previstas na Lei de regência, configurando uma interferência indevida do Poder Executivo na esfera do Poder Legislativo.

Ademais, o juízo de 1º grau asseverou que a publicidade e a propaganda, como manifestações do direito fundamental à liberdade de expressão e informação, podem sofrer restrições, mas tais restrições devem ser veiculadas por lei, conforme disposto na Constituição. A lei 9.294/96, que disciplina essas restrições, foi promulgada justamente para regular a propaganda de medicamentos, entre outros produtos. Embora o propósito da Anvisa seja legítimo, a autarquia deu um “passo além” ao tentar regulamentar um assunto que, nos termos da Constituição, cabe ao Poder Legislativo.

Decisões subsequentemente confirmadas

Apesar da defesa da Anvisa, o Tribunal, em 2º grau, confirmou o entendimento da Seção Judiciária do Distrito Federal, mantendo de forma unânime a sentença que suspendeu os efeitos da RDC 96/08 em relação à empresa autora. No voto do relator, foram citadas observações de Pontes de Miranda, que criticam atos infralegais que buscam modificar direitos, apontando que “onde se estabelecem, alteram, ou extinguem direitos, não há regulamento, há abuso do poder regulamentar, invasão de competência do Poder Legislativo.”

O tribunal também destacou que a matéria foi objeto de análise pela AGU, mediante provocação do CONAR – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, tendo sido exarada a Nota 1-ORJ/GAB/AGU-2009, aprovada pelo Advogado-Geral da União, na qual há o posicionamento pela suspensão da vigência da resolução ou, mesmo, sua pura revogação, tendo em vista a extrapolação dos limites legais.

Conclusão final pelo STJ

A controvérsia chegou ao STJ, onde a 1ª turma, por unanimidade, conheceu parcialmente do recurso especial interposto pela Anvisa e, nessa parte, negou-lhe provimento, mantendo a suspensão dos efeitos da RDC 96/08.

Entretanto, essa decisão não concede um “cheque em branco” para que as empresas veiculem publicidade de medicamentos sem qualquer regulamentação. A fiscalização da Anvisa continua válida, desde que limitada ao que é prescrito na lei 9.294/96 e em outras leis pertinentes.

A separação dos Poderes no contexto da RDC 96/08

Este caso exemplifica a importância, no contexto jurídico brasileiro, do princípio da separação dos poderes, como um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito. Originado das ideias de filósofos como Montesquieu, esse princípio estabelece que as funções do governo devem ser divididas entre três poderes distintos e independentes: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Cada um desses poderes tem atribuições específicas e limitações claras, o que é essencial para evitar abusos de poder e garantir o equilíbrio na administração do Estado.

No caso da RDC 96/08 da Anvisa, a aplicação do princípio da separação dos poderes foi central para a decisão judicial. A RDC 96/08, como um regulamento emitido pela Anvisa, tinha a intenção de regulamentar a publicidade e a promoção de medicamentos. No entanto, o Judiciário entendeu que essa resolução extrapolou os limites do poder regulamentar conferido à Anvisa, que faz parte do Poder Executivo.

Ao impor novas exigências que não estavam previstas na legislação vigente (lei 9.294/96), a Anvisa, segundo o Judiciário, interferiu indevidamente nas atribuições do Poder Legislativo, o único poder que, segundo a Constituição, tem competência para criar ou modificar leis que limitem direitos fundamentais, como a liberdade de expressão.

Essa interferência foi vista como uma violação do princípio da separação dos poderes, pois, ao tentar regulamentar de forma mais restritiva a publicidade de medicamentos, a Anvisa não apenas exerceu seu papel normativo, mas, na visão do tribunal, usurpou a função legislativa. O Judiciário destacou que, embora a intenção da Anvisa fosse legítima, o meio utilizado-um regulamento infralegal-não era adequado para criar novas restrições ou proibições que não estavam previstas em lei.

Importância do princípio no Estado Democrático de Direito

O respeito ao princípio da separação dos poderes é essencial para manter o equilíbrio e a legitimidade das ações governamentais. Quando um poder invade a esfera de atuação de outro, isso pode levar a um desequilíbrio institucional e a potenciais abusos, comprometendo a segurança jurídica e a confiança da população nas instituições.

No caso da Anvisa, o Judiciário atuou para garantir que o Poder Executivo não ultrapassasse seus limites, preservando a função legislativa como prerrogativa exclusiva do Congresso Nacional. Essa atuação é vital para assegurar que as regras e normas que afetam a vida dos cidadãos sejam criadas de maneira legítima, através de processos democráticos e transparentes.

Portanto, o princípio da separação dos poderes não apenas previne abusos, mas também assegura que as decisões governamentais sejam tomadas de forma equilibrada, refletindo a vontade popular e respeitando os direitos e liberdades fundamentais garantidos pela Constituição.