ANVISA: Práticas Colaborativas em Regulação (Reliance) e a RDC nº 741/2022.

A Diretoria Colegiada, na 14ª Reunião Ordinária Pública (ROP) da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), aprovou, no dia 9 de agosto de 2022, a proposta de Resolução (RDC) sobre os critérios gerais para o aproveitamento de análise realizada por Autoridade Reguladora Estrangeira Equivalente (AREE) para fins de regularização de produtos sujeitos à vigilância sanitária, utilizando-se de procedimentos de análise otimizado.

Nesta data (17/08/2022), foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) a RDC nº 741, de 10 de agosto de 2022, a qual visa ser uma norma balizadora, mas não conclusiva, sobre essa prática internacionalmente conhecida no ambiente regulatório como reliance.

Da língua inglesa, o vocábulo reliance significa confiança. Todavia, tecnicamente, no contexto do direito regulatório, o mencionado termo, tem o seu espectro ampliado e significa o ato pelo qual a Autoridade Reguladora Nacional de uma jurisdição leva em consideração as avaliações/decisões efetuadas por Autoridades Reguladoras de outros países para fundamentar suas próprias resoluções e processos, a fim de otimizar práticas internas e valorizar estudos importantes desenvolvidos por outras instituições.

Sobre o tema, a Organização Mundial da Saúde publicou o Guia de Boas Práticas Regulatórias e Boas Práticas de Reliance, em cujo anexo 101 expressa detalhadamente a importância dessa técnica.

No âmbito da regulação sanitária brasileira, o voto2 do Diretor-Presidente Antonio Barra Torres aponta para o fato de a Anvisa já utilizar a estratégia de reliance (v.g. em inspeções fabris, avaliações toxicológicas de defensores agrícolas, segurança de aditivos alimentares, et cetera) e cita os principais foros de convergência regulatória que têm se dedicado à discussão sobre o tema, inclusive com a participação ativa da Anvisa neles.

Anteriormente, quando da aprovação da submissão da Minuta de RDC a Consulta Pública, o Diretor-Presidente já havia afirmado3 que “pode-se perceber que a Anvisa faz uso de diversas práticas colaborativas”, fazendo a ressalva de que estas “necessitam de um conjunto de diretrizes claras e harmonizadas para sua sistematização”.

Da leitura da RDC nº 741/20224 é possível verificar que ela tem por objetivo definir o que é uma “Autoridade Reguladora Estrangeira Equivalente (AREE)” e como elas serão reconhecidas pela Anvisa dessa forma, bem como quais são e o que significam as estratégias passíveis, após a edição de ato normativo próprio, de serem utilizadas pelas unidades técnicas: i) procedimento otimizado de análise; ii) reconhecimento; e iii) trabalho colaborativo.

Para as Autoridades Reguladoras Estrangeiras Equivalentes, foi dedicado o Capítulo II, onde se verificam que os critérios e procedimentos para a admissão de uma AREE serão objeto de atos normativos específicos, a depender do processo de vigilância sanitária ou categoria de produto (Art. 4º). Quer dizer, aparentemente uma AREE poderá ser aceita para uma determinada unidade técnica (v.g. medicamentos) e não aceita por outra (v.g. produtos para a saúde).

A competência para admitir uma AREE será da Diretoria Colegiada da Anvisa (§ 2º, do Art. 4º), a qual será subsidiada pelos pareceres técnicos providos pelas áreas técnicas e pela Assessoria Internacional da Anvisa. Novamente, faz-se alusão a atos normativos específicos. As Autoridades Equivalentes serão objeto de monitoramento e avaliação contínua (§ 1º, do Art. 5º), podendo a Diretoria Colegiada revogar, a qualquer momento, a sua condição de AREE (§2º, do Art. 5º).

No tocante as práticas de confiança regulatória, verifica-se que a norma em comento permite que elas ocorram de forma mútua ou unilateralmente, assim como se limita a definir duas delas, a fim de autorizar que a análise realizada por uma AREE podelogo, trata-se de uma faculdade e não uma obrigação – ser admitida para fins de adoção de um procedimento otimizado de análise (Art. 3º).

A primeira prática diz respeito ao “reconhecimento” (Inc. V, Art. 2º), onde a decisão de uma AREE OU “entidade internacional” é adotada automaticamente pela Anvisa. Dois aspectos, inicialmente, chamam atenção nessa definição:

a) a existência de outra nomenclatura que não diz respeito a uma autoridade reguladora, mas a uma “entidade”. Poderia, então, um produto avaliado (ou qualificado) pela Organização Mundial de Saúde ser automaticamente registrado junto a Anvisa? Ou, um produto reconhecido como seguro e eficaz pelo “Ministério da Saúde” de outro país, também, poderia se valer desse reconhecimento?; e

b) se o reconhecimento é uma prática de adoção da decisão de outra agência de forma automática, então, por que nas disposições finais e transitórias (Art. 13) se afirma que a decisão caberá a Anvisa, independentemente da decisão proferida pela AREE?

Quanto a segunda prática regulatória, temos o “trabalho colaborativo” (Inc. VI, Art. 2º) em que duas ou mais agências compartilham atividades para realizar uma tarefa regulatória. Essa prática vem sendo bastante utilizada, por exemplo, no caso das inspeções internacionais, evitando-se custos para o Estado e diminuindo o tempo de concessão do Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF), na medida em que são aceitos os relatórios de organismos terceiros especializados em inspeção e por autoridades reguladoras estrangeiras por meio de convênios e/ou acordos internacionais.

No parágrafo único do Art. 2º, ainda sobre o trabalho colaborativo, verifica-se uma previsão bem-vinda no caso de processos sanitários e/ou produtos de alta complexidade ou inovadores. Assim como num cenário de pandemia, tal como se viveu recentemente com a Covid-19, em que agentes reguladores, pesquisadores de entidades internacionais e especializadas compartilharam opiniões e análises a respeito de vacinas e produtos para o tratamento da doença.

O procedimento otimizado de análise (Inc. III, Art. 2º), então, é conceituado como uma forma de avaliação técnica na Anvisa, facilitado pelas práticas de confiança citadas e outras não especificadas até o momento, a qual utiliza a análise ou a documentação instrutória emitida por uma AREE como referência “únicaOUcomplementar”.

Sobre os critérios e os procedimentos, reafirmamos que eles deverão ser detalhados em ato normativo específico, no caso, por meio da edição de Instrução Normativa (IN) que, sem inovar, orienta a execução das normas vigentes pelos agentes públicos5. Indicamos a IN como o instrumento para isso, baseando-nos em processo de Relatoria do Dir. Antonio Barra Torres:

Processo: 25351.928808/2021-37

Assunto: Proposta de Consulta Pública para Instrução Normativa que estabelece as modalidades e os critérios aplicados para o procedimento otimizado de análise, em que se utiliza das análises conduzidas por Autoridade Regulatória Estrangeira Equivalente (AREE) ou por Organismo Internacional Estratégico (OIE) para fins de regularização de medicamentos, insumos farmacêuticos ativos (IFA) e produtos biológicos em território nacional.

Área: GGMED/DIRE2

Agenda Regulatória 2021-2023: Projeto 8.36 – Aproveitamento de análise realizada por Autoridade Reguladora Estrangeira Equivalente para fins de regularização de produtos no âmbito da GGMED.

Outra questão importante, antes de adentrarmos nos dispositivos relativos ao tema, diz respeito a inexistência da obrigatoriedade das unidades técnicas da Anvisa de proporem instruções normativas para a utilização dessa estratégia na avaliação e aprovação dos produtos sujeitos à vigilância sanitária.

Dito de outro modo, o procedimento otimizado de análise pode ser utilizado, o que não significa que será empregado pelas áreas da agência. O que a norma prevê, efetivamente, é que a análise de uma AREE pode ser admitida para fins de adoção de procedimento otimizado de análise e que, caso seja utilizado, serão estabelecidos em IN, conforme cada tipo de processo ou categoria de produto.

Prosseguindo, verifica-se no Capítulo (III) que a RDC dispõe sobre a análise e a documentação instrutória elaborada pela AREE para a adoção do processo otimizado. De largada, tem-se que a documentação aportada deverá: comprovar que o produto submetido a avaliação da AREE seja “essencialmente idêntico àquele submetido à avaliação da Anvisa” (Inc. I, Art. 7º); ter sido elaborada com os padrões utilizados pela Anvisa (Inc. II, Art. 7º); e ser apresentada em sua forma completa, inclusive com os questionamentos e/ou orientações da AREE (v.g. exigências técnicas, ofícios, etc.).

Embora indique a necessidade de ser “essencialmente idêntico” o produto, a norma permite que em caso de eventuais diferenças existentesseja com relação aos parâmetros do processo de vigilância sanitária seja com relação ao produto sejam devidamente justificadas pelo solicitante, devendo ser assegurado o mesmo nível de proteção à saúde (§ 2º, Art. 7º).

Isso se dá, até mesmo, pelo fato dessa documentação ser utilizada como referência, ou seja, como norteadora da análise da Agência e não, necessariamente, será a única documentação aportada ao processo junto à Anvisa. Afinal, a documentação “deve atender a todos os requisitos, critérios e especificações estabelecidas pela Anvisa ao processo de vigilância sanitária correspondente” (§ 1º, Art. 9º), assim como poderá ser solicitada documentação ou informação complementar (§ 3º, Art. 7).

Além da documentação, as etapas e fluxos referentes ao processo otimizado de análise serão definidos conforme o processo de vigilância sanitária ou categoria de produto (§ 2º, Art. 8º), sendo que não há qualquer impeditivo para a Anvisa realizar a análise integral da documentação (§3º, Art. 9º). A forma abreviada de analisar um processo e/ou produto pode ter início a partir de um requerimento específico pelo(s) interessado(s) ou, ainda, de ofício pela Anvisa (caput, Art. 8º).

Sem o objetivo de comentar cada um dos dispositivos presentes na RDC, fizemos uma análise daqueles que entendemos ser os mais relevantes e a partir dos quais refletimos sobre algumas possíveis situações, especialmente, analisando os desafios da Anvisa enquanto organização e como órgão regulador de produtos controvertidos:

a) Como aproveitar a análise realizada por uma AREE sobre um determinado produto existente no mercado internacional e que, não é idêntico, mas se assemelha àquele fabricado por uma empresa nacional? Será que se pode utilizar parcialmente as conclusões da AREE para auxiliar no processo de notificação, registro e/ou pós-registro desse?

b) Como “balancear” o tempo de análise dos produtos das empresas que não tem condições de submetê-los a AREE e/ou entidades internacionais, por quaisquer razões ou circunstâncias, com o daquelas fabricantes/importadoras que gozam da oportunidade de fazer uma submissão em ambiente internacional? Como garantir isonomia nesses casos?

c) Como garantir aos fabricantes nacionais que exportam – ou pretendem exportar – os seus produtos o mesmo tratamento junto aos AREE aprovados pela Anvisa, a fim de fortalecer uma relação bilateral entre os órgãos reguladores e, naturalmente, entre os países envolvidos?

d) Como permitir que produtos que, por vezes, não são regulamentados e/ou proibidos pela legislação sanitária vigente, mas que são aceitos e regulamentados pelas AREE aprovadas pela Anvisa, tenham a oportunidade de serem, no mínimo, avaliados pelas unidades técnicas?

e) Como, por exemplo, podemos usar a estratégia de reliance para além dos “processos de vigilância sanitária” (atividades, atos ou práticas finalísticas), para a utilizarmos com relação a regulamentação, ou seja, para a edição de normas?

Conclui-se que a estratégia de reliance é uma tendência mundial e pode ser bem explorada pela Anvisa, desde que os atos normativos a serem editados pelas unidades técnicas preservem a sua autonomia e garantam o tratamento isonômico do setor regulado. Faz-necessário, ainda, alinhar as Instruções Normativas, realmente, com as regulamentações de outros países, notadamente para aqueles produtos que, atualmente, encontram-se desemparados de normas e/ou esbarram em barreiras regulatórias que não são razoáveis.

Referências:

[1] Boas práticas de utilização de decisões regulatórias de outras jurisdições* (reliance) na regulação de produtos médicos: princípios e considerações de alto nível – Disponível em https://www.interamericancoalition-medtech.org/regulatory-convergence/wp-content/uploads/sites/4/2021/06/GRelP_WHO_TRS_1033_Annex_10_-Portuguese_docx.pdf

[2] VOTO Nº 326/2022/SEI/DIRETOR-PRESIDENTE/ANVISA – Disponível em https://www.gov.br/anvisa/pt-br/composicao/diretoria-colegiada/reunioes-da-diretoria/votos/2022/copy8_of_rop-14.2022/item-2-4-35-voto-326-2022-diretor-presidente.pdf
[3] VOTO Nº 31/2021/SEI/DIRE1/ANVISA – Disponível em http://antigo.anvisa.gov.br/documents/10181/6253937/Voto+-+1%C2%AA+Diretoria.pdf/747b4114-e58c-47e7-b90a-cde049f07f24

[4] Resolução – RDC Nº 741, de 10 de agosto de 2022  https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-741-de-10-de-agosto-de-2022-422872551
[5] Resolução – RDC Nº 585, de 10 de dezembro de 2021 – Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-rdc-n-585-de-10-de-dezembro-de-2021-367536548