O termo de compromisso como instrumento de eficiência e racionalização de recursos públicos: Uma alternativa para o dispendioso rito sancionador sanitário.
Autores: Larissa Baldez Campos Meneghel e Altair de Santana Pereira
Vigilância sanitária é “o conjunto de ações que visa eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo o controle de bens de consumo e o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde”. Tal definição foi dada pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990[1], que regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde.
Um pouco mais tarde, a Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999[2], previu que a atividade de fiscalização na área de vigilância sanitária seria executada pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, em um sistema integrado de atribuições e competências específicas de cada ente federativo.
Nesse sistema, denominado Sistema Nacional de Vigilância Sanitária – SNVS[3], compete à União[4] as atribuições de: definir a política nacional de vigilância sanitária e o próprio sistema nacional de vigilância sanitária; além de, entre outras, a de normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde.
No que se refere à formulação, ao acompanhamento e à avaliação da política nacional e das diretrizes gerais do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, a competência da União é exercida por meio do Ministério da Saúde – MS.
No que tange à regulamentação, ao controle e à fiscalização dos produtos que envolvam risco à saúde pública, tal competência é exercida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa[5] – entidade administrativa independente e vinculada ao MS.
Para o exercício da mencionada atividade fiscalizadora, a Anvisa, como entidade administrativa, integrante do Estado, detém o chamado poder de polícia. A doutrina, contudo, cuida de diferenciar, primeiro, esse poder daquele repressivo, exercido pelas autoridades de segurança pública, mas, também, daquele poder essencialmente sancionador, que visa apenas à punição daqueles que infringem as normas sanitárias.
Diferente disso, a Anvisa possui um poder moderado que, antes, privilegia as ações informativas e educativas[6] – o que vai ao encontro dos princípios da precaução e prevenção, norteadores do Direito Sanitário[7].
Nesse sentido, eventual interferência na liberdade dos administrados se justifica quando imprescindível ao bem-estar social, expresso, também, na saúde da população. Trata-se, em outras palavras, de interceder quando há a necessidade de garantir o direito coletivo à saúde, que predomina sobre direitos individuais, sobretudo os de ordem meramente econômica.
Em resumo, mesmo com toda a lógica da prevenção, não há como afastar, por completo, o descumprimento de normas e regulamentos sanitários. Nesse caso, restam caracterizadas as chamadas infrações sanitárias. Essas, por sua vez, são definidas pela Lei nº 6.437, de 20 de agosto de 1977 e, de forma complementar, por Resoluções esparsas, temáticas, da Diretoria Colegiada da Anvisa – RDCs.
A apuração de tais infrações é realizada por meio de Processo Administrativo Sancionador próprio (popularmente chamado de PAS), que, por seu turno, é iniciado por meio da lavratura de auto de infração, observados o rito e prazos estabelecidos na mencionada Lei nº 6437/1977 – além das normas gerais de processo administrativo federal, estabelecidas pela Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999 e suas atualizações; e Resoluções específicas da Anvisa, que tratam de procedimentos mais residuais, como, por exemplo, regras de protocolo.
Como resultado de tais apurações, uma vez configurada a infração sanitária, há uma série de penalidades, de aplicação alternativa ou cumulativa, sem prejuízo da incidência de outras sanções de natureza civil ou penal cabíveis.
Mas qual seria a natureza de tais penalidades? Ou qual seria a função, ou mesmo o desígnio final, do Processo Administrativo Sancionador – PAS e suas possíveis consequências? Pergunta-se qual seria o objetivo do legislador sanitário ao prever seus ritos, fluxos, sanções e toda a peculiaridade dos normativos já mencionados, sobretudo quando se verifica que o bem tutelado pela ordem jurídica é a saúde.
Em que pese parte dos normativos relacionados ao tema remontem às décadas de 70 e 90, com algumas atualizações sensíveis, fala-se, em consonância com a jurisprudência dos últimos anos, em uma função punitivo-pedagógica para os Processos Administrativos Sancionadores Sanitários – PAS.
Isso porque a instrumentalização do controle e da fiscalização dos produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, por meio da instauração de um PAS, reúne, em si, tanto a natureza compensatória ou reparatória de uma ação potencialmente danosa à saúde (de risco sanitário, de ameaça, risco de doença e de outros agravos) ou do dano efetivamente concretizado; mas, também, o caráter educativo, para que haja uma inibição da conduta infracional, a fim de que novos ilícitos não sejam mais cometidos.
Partindo da premissa de que é a saúde o bem a ser protegido, e sendo o direito à saúde um direito constitucional[8] e fundamental, deve-se ter em mente a máxima eficácia de sua realização[9]. Nesse diapasão, entendemos o PAS como um dos instrumentos para a efetivação do Direito de todos à Saúde, como uma das formas (mas não a única) de inibir eventuais riscos e agravos causados por agentes regulados (função pedagógica).
Assim, e considerando que se deve buscar uma solução harmônica no ordenamento jurídico como um todo, a fim de efetivar o Direito à Saúde[10], consultando as atualizações mais recentes da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, constatamos que houve a adoção de um modelo de controle mais consensual da administração pública. Os artigos 26 e 27 do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942[11], preveem a possibilidade de celebração de compromisso para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licenças.
E não foi outro o norte do legislador ao editar a Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019[12], quando autorizou, para o cumprimento do disposto na mencionada Lei, que as agências reguladoras celebrem, com força de título executivo extrajudicial, termo de ajustamento de conduta com pessoas físicas ou jurídicas sujeitas à sua competência regulatória.
Aqui, também, nos parece que há a ratificação de que o controle e a adoção de práticas consensuais são o caminho do ordenamento jurídico hodierno.
Contudo, no que se refere ao arcabouço jurídico-normativo federal específico da vigilância sanitária, ainda não havia a possibilidade do agente regulado, diante do cometimento de uma suposta infração sanitária, aderir/propor a alguma espécie de solução consensual com o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (incluindo a Anvisa), a exemplo do que já ocorre no âmbito das Agências Nacionais de Saúde Suplementar – ANS[13], de Transportes Terrestres – ANTT[14], de Transportes Aquaviários – ANTAQ[15], de Telecomunicações – ANATEL[16], da Comissão de Valores Mobiliários[17] e do Ministério da Educação[18].
Na órbita de atuação dos órgãos mencionados anteriormente, citamos, a título de exemplo, o Termo de Compromisso de Ajuste de Conduta – TCAC (ANS), o Termo de Ajustamento de Conduta – TAC (ANTT), o Protocolo de Compromisso (MEC), o Termo de Compromisso e de Ajustamento de Conduta – TCAC (CVM), o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta – TAC (ANATEL) e o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta – TAC (ANTAQ).
Nessa direção, não se pode negar que a adesão da Administração Pública a institutos de solução consensual resulta em uma atuação mais eficiente e racional, sobretudo se pensarmos que o administrador público persegue, no curso do processo sancionador ou antes mesmo de sua instauração, dissipar a conduta irregular praticada pelo administrado e, consequentemente, conduzi-lo à trilha da legalidade.
Utilizar institutos de autocomposição, ou celebrar termos de compromisso no âmbito da vigilância sanitária, se apresentam como alternativas à instauração do PAS, uma vez que o objetivo de reparar e educar são alcançados, com a abreviação da onerosa e burocrática persecução administrativa sancionadora.
Sob a ótica do agente regulado, a celebração de ajustes dessa natureza implica, também, em redução de custos, comerciais e administrativos, e em célere conformação de vontade com a Administração.
Nesse sentido, o PL nº 4573/2019, de iniciativa do Senado Federal – agora já convertido na Lei nº 14.671, de 11 de setembro de 2023[19] -, teve como objetivo alterar a Lei nº 6.437/1977, para dispor sobre a celebração de termo de compromisso, com a finalidade de promover correções e ajustes às exigências da legislação sanitária.
A Lei nº 14.671/2023, publicada em 12 de setembro de 2023, estabeleceu que o compromisso a ser firmado entre o administrador público e o agente regulado suspende a aplicação de sanções.
Ao examinarmos sua íntegra, no entanto, notamos que o texto deixou que regulamento próprio discipline os termos dos acordos eventualmente celebrados com os infratores das normas sanitárias. Assim, embora traga regras mínimas para a celebração, silenciou em relação a alguns pontos que entendemos relevantes.
É importante abrir um parêntese para esclarecer que não se objetiva por meio deste sintético arrazoado esgotar as observações para aprimoramento da norma, mas, sim, reforçar a necessidade de se promover uma conjugação de esforços entre os atores públicos e privados envolvidos, com o objetivo de modernizar a legislação setorial sanitária.
A título exemplificativo, citamos a ausência de uma delimitação temporal para a ocorrência da celebração do Termo: se poderia se dar no curso do procedimento administrativo sanitário, ou antes dele, ou se a qualquer tempo. A fixação de tal marco seria interessante, a fim de evitar transtornos para o setor regulado e para o próprio órgão regulador.
Sobre esse aspecto, importa mencionar o exemplo paradigmático da Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017, que dispõe sobre o processo administrativo sancionador no âmbito do Banco Central do Brasil – Bacen e da Comissão de Valores Mobiliários – CVM. De acordo com o art. 11 do diploma, o Bacen pode deixar de instaurar ou suspender, em qualquer fase que precede a tomada de decisão de primeira instância, o processo administrativo destinado a apurar infração. Nesse caso, observa-se que o legislador delimitou, com maior cautela, o momento processual que permite a efetivação do ajuste.
Outra oportunidade de melhoria no texto diz respeito à ausência de previsão quanto à possibilidade do agente regulado, que já possua PAS em curso, antes da vigência da novíssima Lei, de celebrar o Termo. De fato, não nos parece que a intenção do legislador seja excluir tais processos da inovação legislativa, considerando que, conforme relato do autor da proposta, “o projeto legaliza uma prática comum na vigilância sanitária, de solucionar conflitos de forma negociada”[20].
Ademais, o Decreto-Lei nº 4.657/1942, já citado, garante que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. Somado a isso, o princípio geral do direito brasileiro de que o tempo rege o ato (tempus regit actum) preconiza que os atos jurídicos se regem pela lei da época em que foram praticados.
Assim, para os PAS ainda não finalizados, pendentes de decisão, não há que se falar em coisa julgada e, iniciada a vigência da nova Lei, a ela estariam submetidos os PAS já iniciados, mas ainda não julgados pela Agência.
Embora entendamos ser esta a interpretação que se amolda ao ordenamento jurídico brasileiro, uma vez mais, o legislador teria sido certeiro e evitaria maiores discussões caso tivesse previsto, expressamente, a possibilidade da aplicabilidade da nova regra aos casos em curso, cujos processos sancionadores foram instaurados antes do advento da nova Lei.
Em que pese as poucas críticas ao texto, ressaltamos que a mudança, per si, representa um marco para o setor, tendo em vista a racionalização e eficiência geradas para o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária; assim como a redução de custos, comerciais e administrativos, para o agente regulado.
Na esteira da consensualidade no âmbito do direito público, a inovação legislativa também oferece uma nova forma de mitigar as relações existentes entre o administrado e o administrador público.
Por fim, corroborando a ideia de inovações que traduzem a consensualidade do direito moderno e da administração pública, recordamos que a Corte de Contas Federal, presidida pelo Ministro Bruno Dantas, inaugurou ainda em janeiro do corrente ano, em sua estrutura interna, a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso), cuja competência é a de desenvolver, propor, sistematizar e avaliar propostas para a solução consensual de controvérsias no País.
Sobre isso, o Ministro Presidente esclareceu que[21]“É fundamental que problemas relevantes para o País sejam tratados de forma diferenciada, com foco no interesse público. No contexto que vivemos hoje, de complexificação do Estado e dos sistemas sociais, a lógica punitiva, que prioriza a responsabilização dos agentes, não pode se sobrepor aos interesses e necessidades dos cidadãos”. Em seguida, concluiu que “…a criação da SecexConsenso vai permitir mitigar litígios e solucionar problemas relevantes para o País de forma consensual, com segurança jurídica e valorização do diálogo institucional entre os diferentes órgãos estatais e particulares que se relacionam com o poder público”.
Recentemente, o Ministro Bruno Dantas também lançou seu livro intitulado “Consensualismo na Administração Pública e Regulação: Reflexões para um Direito Administrativo do Século 20″, sob a expectativa de enriquecer – com embasamento doutrinário já elogiado pelo ministro Gilmar Mendes – o debate acerca das soluções consensuais na administração pública.
Tem-se notícia de que no prefácio da obra (que ainda se encontra em fase de pré-venda), o Ministro Gilmar Mendes resume assertivamente a temática, que perfeitamente se encaixa à possibilidade conferida pela recém-publicada Lei nº 14.671/2023: “o administrado tem algo a dizer; pode colaborar na construção da decisão administrativa. Não se trata apenas de, por mera concessão tática, ouvir quem está abaixo”[22].
[1] Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
[2] Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências.
[3] O Sistema Nacional de Vigilância Sanitária compreende o conjunto de ações definido pelo § 1º do art. 6º e pelos arts. 15 a 18 da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, executado por instituições da Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que exerçam atividades de regulação, normatização, controle e fiscalização na área de vigilância sanitária.
[4] Art. 1º, § 1º, inciso I e II da Lei nº 9.782/99.
[5] Substituiu a Secretaria de Vigilância Sanitária, órgão da administração direta subordinado ao Ministério da Saúde, que tinha como atribuições dar cumprimento às disposições contidas na Lei nº 6.360/76 e no Decreto nº 79.094/77 no tocante à vigilância sanitária, nos moldes de outras agências reguladoras e fiscalizadoras de outros países.
[6] A título de exemplo, vide a aplicação do critério da dupla visita na fiscalização sanitária. A Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, expressamente garante o direito à fiscalização orientadora e o critério da dupla visita quando a atividade ou situação, por sua natureza, comportar grau de risco compatível com esse procedimento.
[7] Verificar os princípios da prevenção e da precaução no Direito à Saúde.
[8] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
[9] Conforme SARLET (2008. Página 286), o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais exige que o intérprete sempre tente fazer com que o direito fundamental atinja plena realização.
[10] Vide a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy.
[11] Incluídos pela Lei nº 13.655, de 2018.
[12] Dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras e altera outras leis relacionadas.
[13] Lei nº 9.656, de 3 de junho de 198, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde.
[14] Resolução nº 5.823, de 12 de junho de 2018, que dispõe sobre os requisitos e procedimentos para celebração e acompanhamento de Termos de Ajustamento de Conduta a serem firmados no âmbito da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, para correção ou compensação de descumprimentos de obrigaçõe contratuais, legais ou regulamentares.
[15] Resolução ANTAQ nº 92, de 15 de dezembro de 2022, que estabelece critérios e procedimentos para celebração de Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta no âmbito da Agência Nacional de Transportes Aquaviários.
[16] Resolução nº 629/2013, que aprova o Regulamento de celebração e acompanhamento de Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta.
[17] Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários.
[18] Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004, que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – SINAES e dá outras providências.
[19] O início da elaboração do presente artigo se deu anteriormente à conversão em lei.
[20] https://www.camara.leg.br/noticias/976712-CCJ-APROVA-POSSIBILIDADE-DE-ACORDO-COM-A-VIGILANCIA-SANITARIA-ANTES-DA-APLICACAO-DE-MULTAS
[21] https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tcu-investe-em-solucoes-consensuais-de-conflito-para-temas-de-grande-relevancia.htm
[22] https://www.conjur.com.br/2023-ago-27/dantas-lanca-livro-consensualismo-administracao-publica